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André Bernardo para a BBC News Brasil
No dia 11 de janeiro de 2016, Gláucia Andressa dos Santos Gomes chegou para mais um dia de trabalho na Beneficência Portuguesa de Araraquara, no interior de São Paulo, quando soube que o hospital estava prestes a fechar suas portas. Mãe da pequena Emily, então com um ano e sete meses, a copeira, de 27 anos, logo se deu conta de que ficaria desempregada. Mais grave que isso: lembrou que Cotinha, uma senhora de 60 e poucos anos que, desde criança, morava na instituição, não teria para onde ir.
O apelido fora dado pelas freiras que, na década de 1960, acolheram Cotinha, vítima de atropelamento. Segundo os funcionários mais antigos, ela e o irmão andavam pelo acostamento da Rodovia Washington Luís, na altura do bairro de Quitandinha, quando foram atropelados por um caminhão. O menino, de uns quatro anos aproximadamente, não resistiu aos ferimentos e morreu no local. Sua irmã, sem qualquer documento de identificação, foi levada, em estado grave, para a Beneficência Portuguesa.
Como ninguém da família apareceu para visitá-la, Cotinha, já recuperada do acidente, foi alojada pelas irmãs em um cômodo próximo à lavanderia. Até hoje, ninguém sabe dizer ao certo seu nome, sua idade ou o ano em que chegou ao hospital. Aos 67 anos presumidos, quase não fala, repete umas poucas palavras e se comunica através de gestos. Já adulta, começou a executar pequenas tarefas, como lavar louça, passar roupas e dobrar lençóis. Foi limpando as mesas do refeitório, aliás, que conheceu Gláucia, em março de 2010, quando a copeira começou a trabalhar na unidade.
Com o fechamento da Beneficência Portuguesa, que acumulava uma dívida de R$ 70 milhões, 300 funcionários foram dispensados. Quando soube que Cotinha tinha sido mandada para um abrigo, Gláucia correu para visitá-la. E não gostou nem um pouco de encontrá-la em um canto, chorando sem parar e repetindo que queria ir embora. Foi quando tomou a decisão que mudaria sua vida.
“Quando decidi levá-la para casa, não pensei no dia de amanhã. Sabia apenas que estava cumprindo uma missão que Deus havia me confiado: ser a ‘mãe’ da Cotinha”, explica, com a voz embargada.
Críticas não faltaram. “Você está louca, menina?”, provocavam algumas ex-funcionárias do hospital. “Ela vai te dar trabalho!”, alertavam outras. “Vocês não têm coração, não?”, costuma indagar aos que questionavam sua sanidade.
Os pais de Gláucia, Osmar e Cláudia, receberam Cotinha de braços abertos. O marido, Fábio, também não fez objeção. Na casa alugada, Gláucia acomodou Cotinha no quarto da Emily, que passou a dormir com a mãe. Seus passatempos favoritos são assistir à TV e brincar de boneca com a caçula. “Naquele dia, a Cotinha ganhou um lar e eu, mais uma filha. Quando viu a Emily me chamar de mãe, começou a chamar também”, se emociona.
Como as despesas de casa aumentaram, Gláucia gastou mais do que gostaria no cartão de crédito e, em poucas semanas, ficou com o nome sujo na praça. Logo, vizinhos e amigos se mobilizaram para ajudá-la, com a doação de roupas e alimentos. Foi nessa época que Gláucia ganhou uma importante aliada em sua batalha para oficializar a adoção de Cotinha: a advogada Giulia Negrini.
“O direito é uma ciência que precisa se adaptar aos anseios sociais. O envelhecimento da população é uma realidade que precisa ser debatida. Muitos idosos vivem em situação de abandono e, por essa razão, a adoção pode se tornar uma medida salutar. Compete aos profissionais da área construir e viabilizar institutos que garantam os direitos fundamentais dos envolvidos”, afirma a advogada Patrícia Novais, da Comissão Especial de Direito de Família da OAB-ES.
Quanto a Gláucia, a vida, aos poucos, voltou ao normal. Três meses depois de ser demitida do hospital, foi contratada como cuidadora em uma casa de repouso. Com o dinheiro da rescisão, pagou as dívidas e comprou um carro de segunda mão e vai aos poucos refazendo a vida, dela e a de Cotinha.
“Qualquer pessoa, no meu lugar, teria feito o que eu fiz. Quem tem bom coração não vira as costas para o próximo”, garante.
Fonte: portalmorada.com.br